A volta do semi-analfabeto
"O problema é mais de matemática que de português. Meio analfabeto ou meio alfabetizado é rigorosamente a mesma coisa, como um copo meio vazio ou meio cheio. Falo de 'meio' como advérbio, significando 'por metade', não de 'meio' como adjetivo, que significa inacabado. A propósito, mesmo o novo Aurélio Século XXI, um dicionário criticado por ser muito inclusivo, ou por ser mais permissivo do que deveria, ainda assim traz apenas o verbete semi-analfabeto ('que ou aquele que é meio analfabeto, mal alfabetizado'), e ignora a palavra semi-alfabetizado." (Fábio Horta)
Quem leu as duas colunas anteriores sabe que essa coisa de semi-analfabeto ou semi-alfabetizado está virando uma novela por aqui. Nada parecido com a novela emocionante em que o presidente da República é o personagem principal, mas que pode servir para reflexões sobre um torneiro mecânico conquistar o mais alto diploma de seu país.
Como se vê, uma simples questão gramatical pode ser defendida por ângulos diferentes, como fizeram os leitores, até mesmo uma questão já estabelecida num dicionário consagrado, que poderia ser resolvida por uma simples consulta (nem sempre fácil para um deprimido para quem a ida ao dicionário pode parecer um trabalho hercúleo). E, no entanto, até um consagrado dicionário pode ser questionado, como diz Fábio em sua mensagem.
Imagine-se então as questões que um governante enfrenta ... Quantas se apresentam a ele multifacetadas, não com apenas duas possibilidades de resolução? E quantas envolvem a vida de milhões de pessoas, e não apenas o uso de um termo? Aliás, minha amiga petista prefere semi-alfabetizado a semi-analfabeto, porque o primeiro dá a impressão de um copo cheio pela metade e o segundo, a de um copo vazio pela metade. É uma otimista. Eu, como gosto de ofender, prefiro semi-analfabeto.
Minha sogra é petista (ok, não precisa dizer, eu sei: estou perdido). Ela é uma mulher valorosa, que lutou muito para proporcionar formação superior às suas filhas. A vida (o país?) não lhe ofereceu a chance de completar seus estudos, mas a educação que lhe foi possível adquirir levou-a a rejeitar um pretendente semi-alfabetizado justamente por ele ser um semi-analfabeto. É uma das histórias engraçadas de nossa família. O motivo da rejeição: entre outros erros gramaticais, o pretendente cometia um que zunia no seu ouvido. Ele não dizia "aquilo é meu", mas "aquilo é de eu", ou, como gostamos de pronunciar, "di eu". Ela o apelidou de João Di Eu. Pois bem, esse semi-analfabeto tinha talento para os negócios e enriqueceu. Mas minha sogra nunca se arrependeu de não ter se casado com ele.
Ela não se casou com o João Di Eu, mas votou no Lula para presidente. Assim como muitas pessoas com formação sólida. Por quê? Por que tanta gente não raciocinou como Millôr Fernandes? Ele repete em sua coluna na revista "Veja" o argumento de que ninguém escolheria como seu médico ou seu piloto de avião um torneiro mecânico formado. Mas para presidente do país, o cargo mais alto, sim, os brasileiros de todas as classes sociais o escolheram e, de acordo com as pesquisas, ainda pensam em escolher.
Durante a última campanha para presidente, com Lula em primeiro lugar nas pesquisas, eu gostava de provocar minha amiga petista dizendo "e pensar que ele vai perder ...", fazendo referência às eleições que perdera, apesar de ter estado sempre bem nas pesquisas. Quando ele ganhou, ela me desafiou, o que eu diria agora? Respondi: o sonho acabou. E: o Brasil precisava dessa experiência, precisava testar essa ilusão. Me orgulho de ter dito isso lá atrás, nos primeiros dias da "esperança que venceu o medo".
Eu sei o porquê da eleição, dessa escolha: não valorizamos a educação, não valorizamos o conhecimento. Valorizamos a ideologia. A maior contribuição de Lula à história brasileira será a sua derrocada. Justamente porque ele alardeou sua pouca formação, seu fracasso é um elogio à educação.
Claro, pode-se sempre dizer que o problema de Lula não é a formação, mas a corrupção (de seu partido ou aliados) e que corrupção se encontra em todas os níveis sociais. Concordo com isso, mas não se pode negar que a educação, assim como a riqueza, aumenta as possibilidades de desenvolvimento. Não precisamos desejar a ignorância: minha amiga petista está agora pensando em votar no PSOL ou no PSTU.
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.E-mail: nederman@that.com.br
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