A militarização da Abin
JORGE ZAVERUCHA
Está sendo implementada na Abin (Agência Brasileira de Inteligência) uma série de mudanças anacrônicas. Modificações que apontam para o fortalecimento da militarização da inteligência civil brasileira.
Entenda-se por militarização o processo de adoção e uso de modelos militares, conceitos e doutrinas, procedimentos e pessoal, em atividades de natureza civil. A militarização é crescente quando os valores do Exército se aproximam dos valores da sociedade. Quanto maior o grau de militarização, mais tais valores se superpõem.
Inteligência, convém lembrar, é um bem público arduamente disputado entre os grupos que almejam controlar o aparelho de Estado.
O processo de militarização da Abin foi iniciado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. FHC indicou um general para criar o arcabouço institucional da Abin. Não surpreende o resultado. Assim como o SNI era o órgão central do Sisni (Sistema Nacional de Informações), a Abin exerce o mesmo papel em relação ao Sisbin (Sistema Brasileiro de Inteligência).
Além do mais, a lei que criou a Abin é abrangente. Diz que cabe à Abin "fornecer subsídios ao presidente da República nos assuntos de interesse nacional". Como não definiu o que é "interesse nacional", cabe a cada presidente da República decidir o que vem a sê-lo.
Nos países democráticos, ao contrário, procura-se deixar estabelecido quais são os mandatos e as missões dos serviços de inteligência. Afora isso, há uma ausência de definição sobre os limites da atuação e capacidade de operação da Abin. E isso muito embora o modelo canadense (Canadian Security Intelligence Service - CSIS) tenha servido de inspiração para a construção da Agência Brasileira de Inteligência.
A Abin deveria ficar diretamente subordinada ao presidente da República. Surpreendentemente, logo após a criação da Abin pelo Congresso Nacional, FHC, via medida provisória, subordinou a Abin ao general ministro-chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), cargo de natureza militar.
É o general quem efetivamente manda e, por conseguinte, decide quais informações devem chegar ao presidente da República. Sem esquecer que o diretor-geral da Abin tem de ser aprovado pelo Senado, enquanto o ministro é indicado pelo presidente da República. Como quem efetivamente manda é o ministro de Estado, o controle legislativo perdeu, e muito, sua importância.
Durante o regime militar, o SNI respondia diretamente ao presidente da República. Ou seja, quem coletava as informações não era quem tomava a decisão sobre o que fazer com elas.
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As mudanças executadas na Abin são anacrônicas e indicam a militarização da inteligência civil brasileira
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No governo FHC, todavia, essas duas competências ficaram concentradas na figura de uma única pessoa: o general chefe do GSI. Esse arranjo institucional, inexistente no mundo democrático, foi mantido pelo governo Lula.
Tal situação lembra, do ponto de vista institucional, o ocorrido com o SIN (Serviço de Inteligência Nacional) de Alberto Fujimori. Formalmente, o chefe do SIN era o almirante Humberto Rozas, mas quem realmente mandava na instituição era Vladimir Montesino, assessor do presidente peruano
A Abin foi anunciada como uma agência exclusivamente de inteligência. Seu papel seria o de recolher, organizar e analisar as informações disponíveis. Mas se está querendo que seja também uma agência operacional. Tanto é que o Estatuto do Desarmamento (de dezembro 2003) concedeu porte de arma para os "agentes operacionais" da Abin. Sem efetivo controle legislativo, como ocorre hoje em dia, pode transformar-se em polícia política.
Como se tudo isso fosse pouco, o atual diretor da Abin, de escolha pessoal do general titular do GSI, institui o carcará ("pega, mata e come") como ave-símbolo da agência. Na nova logomarca, o carcará aparece sobrevoando o planeta Terra, no qual se lê o dístico "Em Defesa do Brasil". Embora caiba à Abin, conforme dispõe a lei nº 9.883 de 7/12/99, defender o Estado democrático de Direito. Ou seja, um ente político juridicamente definido.
O atual diretor-geral também mudou a terminologia dos cargos, que passam a ser comandante, comandante adjunto, (sub) oficiais de inteligência e (sub) comissários, que guardam paralelo com as patentes de coronel, tenente-coronel, major, capitão etc.; criou uma bandeira própria e o juramento dos funcionários à bandeira, à Constituição e à honra.
E, como não poderia deixar de ser, também compôs um hino em parceria com o general que dirige a Secretaria Nacional Antidrogas cuja letra é, possivelmente, a mais marcial já criada entre todos os hinos de instituições oficiais civis do Brasil.
Destaque para a última estrofe: "Salve! Salve! A nossa pátria brasileira! / Orgulho temos nós em tê-la num altar / Onde a inteligência como a que protegemos / Por certo é um componente que a faz avançar". Seguida do estribilho: "A Abin é a luz forte que dissipa a escuridão / Desfaz as incertezas e desvenda o sorrateiro / A Abin, que aliada aos seus parceiros de sistema, / É a linha invisível de defesa do Estado brasileiro".
Será que, futuramente, os funcionários da Abin terão de bater continência e fazer ordem unida?
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Jorge Zaverucha, 50, doutor em ciência política pela Universidade de Chicago (EUA), é professor da Universidade Federal de Pernambuco, pesquisador do CNPq e coordenador do Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas da UFPE. É autor de "FHC, Forças Armadas e Polícia: Entre o Autoritarismo e a Democracia -1999-2002", entre outras obras.
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